sexta-feira, 23 de julho de 2010

J & L

Ela estava surpresa com a tranqüilidade de J., ele sempre foi muito afoito, e naquela noite em que eles estavam em seu apartamento, sozinhos, L. preparou um clima gostoso, tinha incenso, estavam na sala, escutavam um disco velho de B.B. King, tomando vinho, jogando cartas e fumando já há algumas horas, conversavam e riam enquanto jogavam, o máximo que ela percebia era ele admirando suas pernas pelo tampo da mesa de vidro, L. usava um vestidinho roxo e uma calcinha de florzinha minúscula, louca pra que J. encerrasse aquela partida com um gesto pateticamente bruto e avançasse acintosamente sobre a mesa pra alcançá-la. Ela achava charmoso o jeito com que ele tentava tomar conta das situações sem conseguir, e sempre se embaraçando nas palavras e na própria graça daquilo tudo, mas essa noite não, ele não tinha dado ainda nenhuma investida, ela sempre o rechaçava, já se conheciam há anos, eles se encontravam sem periodicidade, quando dava vontade, sem compromissos, se pegavam em ponto de ônibus, banco de praça, onde dava pra se escorar, mas L. sempre impunha seus limites que deixavam J. ainda mais descontrolado.
O certo é que, no alto de todo seu autocontrole, ao final de uma das partidas, enquanto L. embaralhava, J. se levantou, foi até a estante onde estavam os discos de vinil do pai dela, muito samba de raiz, MPB, bolero, saiu daquele empoeirado com Ângela Rô-ro e Luís Melodia, já tinha ouvido falar dos escândalos dela, e o título de maldito do outro lhe interessava, não tinha cd-player no apartamento, ele tinha levado Led Zeppelin e Janis Joplin, andava meio fascinado pela força do som do Zeppelin e a fossa blueseira de Joplin. Pôs os vinis sobre a vitrola que pertencia ao pai da garota e quis saber qual deveria escutar primeiro, falou de suas preferências querendo alguma referência, e meio desconfiado colocou o primeiro álbum homônimo de Ângela Rô-ro, um clássico da música brasileira, a voz dela grave e rouca curtida em uísque e nicotina, ele identificou logo a vivacidade da cantora e aguardou os seus grandes momentos, na capa do álbum ela aparecia jovem e em suas letras a força de quem já tinha vivido intensamente todas as experiências, J. ficou com tesão, imaginou: - Ela está esperando que eu avance só pra me dizer não! – no sulco do vinil, Ângela cantava: - Que preconceito barato, que o cão caça o gato! Me morde, me desafia, só meu olhar lhe arrepia! – entra um solo de guitarra. Blues! Depois de algumas outras músicas, uma conhecida, que o Barão Vermelho fez cover, Amor, Meu Grande Amor, passou longe da maravilhosa melancolia da original, muito mais forte, J. descobriu que gostava daquele som!
J. e L. eram muito diferentes, ele era um rocker alucinado, enquanto que ela era uma aficionada pela coleção de vinis do pai, ele escondia o rosto atrás dos cabelos encaracolados compridos, ela usava um corte bem curto, era uma negra carnuda, realmente acima do peso, daquelas que não aparecem nas revistas que cultuam a anorexia, mas que sabem ser apreciadas por homens que gostam realmente de mulher, ele era de uma mestiçagem interessante, tinha até um pouco de, quem sabe, árabe naquela mistura, era alto, espaçoso, ela de vez em quando usava óculos, precisava, mas insistia em não usar, ele cutucava as espinhas que teimavam em aparecer mesmo já tento passado da fase, um quase-casal improvável mas que tinham muita vontade de conhecer os muitos mundos que existiam dentro de cada um, o que tinham pra revelar e esconder.
Planejaram mais duas partidas, já era quase meia-noite, não sabiam como ia terminar aquele jogo. No meio de um morto surpreendentemente dado por L., J. trocou o disco, pensando se ela queria terminar logo aquela brincadeira, Melodia invadia o ambiente meio a capela, acompanhado apenas por uma flauta, era um samba-canção, flauta, e J. lembrou Jethro Thull, buscava suas referências, mas o clima do disco era muito diferente de qualquer coisa que estava acostumado a ouvir, o álbum era recheado de um samba, meio jazzista, minimalista no instrumental, enfatizando a voz e a letra. Do nada uma guitarra distorcida, era uma música chamada Pra Aquietar, um rock com aquela cara de anos setenta, falava sobre o cotidiano, imagens oníricas e machismo, curtiu, era interessante e inesperado. Tudo sob controle. Ainda.
A partida e tudo mais ficaram desinteressantes quando L. se acomodou na cadeira com uma das pernas arqueada e a outra com o pé no acento, seu queixo caiu no joelho, ela colocou a mão no meio e deu um sorrisinho olhando pro chão. J. não conseguia mais disfarçar seu desejo, olhava pras cartas e pra ponta da calcinha de florzinhas que aparecia, mal tinham se tocado desde a hora em que chegou, ela estava cheirosa, J. simplesmente chamou ela pro quarto. Se eles transaram? Algumas vezes naquela madrugada. Amanhecia, eles estavam nus, novamente na sala, assistiam um VHS, Eu Te Amo, cinema nacional, Sonia Braga, Vera Fisher, Pereio, existencialismo, sexo, uns diálogos meio sem nexo, J. pensou n’O Último Tango em Paris, tinha sexo, um apartamento, existencialismo, mas existia uma força muito maior, em tudo mais, pensou neles mesmos, na cena da manteiga, L. já dormia e ele ainda olhava o teto.
Não se tornaram um casal, ficavam longos períodos sem se ver, estando com outras pessoas, e períodos em que estavam apenas os dois, longe do mundo, trancados no apartamento, no meio do mato, fizeram umas viagens juntos até, e às vezes ficavam no ponto de ônibus, sabiam das outras histórias, falavam de amor e de amar, e mais do que tudo, se amavam, daquele jeito só deles que não se preocupavam em entender ou explicar, trocaram muitas experiências, cinema, livros e música, cigarros, vinhos, luares e lugares.
Existem portos que te libertam. No único lugar onde pode se exercer a mais pura sinceridade, sem medo, a mentira é só uma brincadeira pra não se esquecer do oco do mundo, sedução e a coragem de pular para além dos limites é verdade reluzente.
J. aprendeu a gostar de Zizi Possi e L. é uma grande fã de ZZ Top.

Um comentário:

  1. CARALHO, quem são esses dois, precisam casar, ter filhos, escrever um livro biográfico, adorei!!
    Alisson vc é o cara, puta q pariu!!!!

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